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Coluna Marcelo Moryan: O outro lado do vidro fumê
Por Marcelo Moryan
Publicado em 7 de dezembro de 2025 às 18:00
Atualizado em 7 de dezembro de 2025 às 18:01
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Eu moro em Guarapari. Isso significa que minha relação com ônibus de excursão é, digamos, antropológica. Eu os vejo chegando, ocupando as ruas, trazendo a euforia do descanso alheio enquanto eu, do lado de fora, geralmente estou correndo contra o relógio. O ônibus é sempre o “outro”. É o aquário onde turistas observam minha cidade.
Mas a vida, com seu senso de humor peculiar, decidiu me colocar do outro lado da moeda — ou melhor, do outro lado do vidro fumê.
Cá estou eu, a caminho de Aparecida e pela primeira vez, numa excursão. O clã completo está a bordo. Família reunida, esse milagre logístico que deveria contar como prova de santidade antes mesmo de chegarmos à Basílica.
Enquanto o ônibus rasga a estrada, devorando quilômetros de asfalto, me pego caindo na velha armadilha mental: a culpa do repouso. 2025 foi um ano extraordinário, ímpar, daqueles que a gente quer emoldurar. Trabalhei, produzi, corri. E agora, sentado nesta poltrona reclinável que desafia a anatomia humana, meu cérebro viciado em dopamina entra em abstinência. Olho pela janela e vejo o mundo passar rápido — e reconheço em mim essa arrogância moderna de querer “dobrar o tempo”. Queremos que o dia tenha 36 horas, que o descanso seja “produtivo”, que o sono seja otimizado por aplicativo. A gente quer chegar logo, mas, quando chega, já está pensando na volta. Somos cronofóbicos: temos pavor de ver o tempo passar sem que estejamos riscando um item de uma lista imaginária.
Eis a ironia suprema: estou indo agradecer por um ano de conquistas. Mas a minha mente, sabotadora profissional, sussurra: “Você está há quatro horas sentado. Imagine quantos e-mails poderia ter respondido. Quanto da vida você está desperdiçando olhando para essa paisagem de pasto e posto de gasolina?” É ridículo estar indo para a casa da Padroeira, o lugar máximo da contemplação, e estar preocupado com a minha ‘performance’ de inatividade no trajeto.
Mas então olho para o lado. Vejo minha família. O caos maravilhoso de ter todos juntos, compartilhando salgadinhos de pacote e histórias repetidas. Percebo que o ônibus de excursão é uma cápsula do tempo em que a única obrigação é estar. Não dá para adiantar a chegada. Não dá para fazer o motorista correr mais. O controle, essa ilusão que eu amo tanto, ficou na rodoviária de Guarapari.
Talvez o milagre comece aqui, na estrada. O milagre de perceber que o descanso não é um crime e que a improdutividade momentânea é o preço que se paga para recarregar a alma.
Vou pedir à Nossa Senhora não apenas proteção, mas também a capacidade de desligar o “cronômetro interno”. Porque, no fim das contas, a vida não é sobre o quanto a gente correu, mas sobre quem estava sentado na poltrona ao lado quando decidimos, finalmente, parar e apreciar a viagem. Agora, se me dão licença, vou tentar cochilar sem culpa. Porque descobri que o verdadeiro milagre não está em Aparecida — está aqui, nesta poltrona reclinável, onde finalmente consigo estar do lado de dentro do vidro fumê, observando minha própria vida passar.
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