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Coluna Marcelo Moryan: Metástase: crônica de um mundo que escolheu adoecer
Por Marcelo Moryan
Publicado em 9 de novembro de 2025 às 18:00
Atualizado em 9 de novembro de 2025 às 18:00
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Nosso mundo tem um câncer. E, sinto informar, ele entrou em metástase. A doença não está mais localizada, um tumor discreto que poderíamos extirpar com alguma esperança. Ela se espalhou. Suas células malignas correm em cada veia da sociedade, do diálogo sussurrado em um quarto de casal ao grito de guerra em praça pública. A violência, antes um sintoma agudo, tornou-se nossa condição crônica.
Observamos os surtos febris em toda parte. Vemos na cozinheira do Piauí, que, esmagada pela indiferença de uma concessionária de energia, explode em fúria e quebra tudo. Ela não é uma vândala; é o sintoma visível de um corpo social doente, convulsionando de dor e impotência. Testemunhamos, com um arrepio de horror, o orgulho mórbido que brota ao comemorarmos 130 mortos numa megaoperação no Rio. Que tipo de civilização se vangloria da própria carnificina? Regredimos ao estado primitivo, confirmando a máxima que o dramaturgo romano Plauto cunhou há milênios e que Thomas Hobbes, mais tarde, imortalizaria em sua filosofia: ‘o homem é o lobo do homem’ (Homo homini lupus est).
E antes que o leitor, em sua poltrona confortável, me acuse de defender bandidos, eu devolvo a acusação com um espelho. A culpa por esta esculhambação generalizada é inteiramente nossa. Nossa, que com a arma mais poderosa de todas – o voto – entregamos o poder aos verdadeiros manda-chuvas despreparados e corruptos. Aos políticos que, há décadas, nos oferecem o mesmo placebo mofado para a cura de todos os males: a Educação.
Que educação? Eu me lembro, como se fosse hoje, vestido de médico para um desfile cívico, passando pelo palanque do Presidente Ernesto Geisel na fundação de Ariquemes, lá nos idos de Rondônia. Desde aquele tempo, ouço a mesma ladainha: “A educação vai salvar o Brasil”. Enquanto isso, o Japão, que nos anos 70 nos olhava de um patamar não tão distante, fez o seu dever de casa e se tornou um gigante. Nós? Continuamos repetindo o mantra no ritmo da banda “Os Incríveis”: “A educação vai salvar o Brasil, lá lá lá lá” – enquanto nossos jovens aprendem a ler o preço no cardápio do crime organizado.
A cegueira é um projeto. E não é novo. Goya, em 1799, já nos mostrava em sua gravura imortal que ‘o sono da razão produz monstros’. E os monstros, ele sabia, não são os das fábulas infantis. São as consequências reais e aterrorizantes que emergem da escuridão: a tirania, o fanatismo, a corrupção, a violência desenfreada e a injustiça que nascem quando uma sociedade abandona o pensamento crítico. Nossos monstros, paridos pela nossa própria apatia, hoje governam de dentro dos palácios.
A metástase não conhece fronteiras. Ela se manifesta no feminicídio que ceifa vidas em progressão geométrica e nas velhas ameaças atômicas que voltam a assombrar nossos noticiários, como um câncer antigo que o mundo julgava ter curado. Estamos doentes em escala planetária.
Se ainda estamos vivos – ou melhor, se nossos corpos ainda funcionam enquanto nossas almas estão mortas –, é por pura e simplesmente sorte. Um capricho estatístico. A trajetória que seguimos aponta para o abismo, um colapso inevitável que nos faz pensar que, talvez, até Deus tenha se cansado e desistido de sua criação.
Contudo, no silêncio que antecede o fim, uma fagulha de fé ainda teima em existir. A fé de que o milagre não virá dos céus, nem dos palanques, mas da nossa capacidade de finalmente acordar desta cegueira coletiva. A cura, se é que ela existe, começa no instante em que admitimos, com a coragem dos desenganados: o câncer somos nós. E está na hora de começar o tratamento de choque.
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As informações e/ou opiniões contidas neste artigo são de cunho pessoal e de responsabilidade do autor; além disso, não refletem, necessariamente, os posicionamentos do folhaonline.es
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